Sou filha de Retornados e com muito orgulho

Acabei hoje de ler (compulsivamente) o livro da Dulce Maria Cardoso, O Retorno da Tinta da China.

Andava há mais de um ano a ganhar coragem. E precisava de coragem porque sofro muito a ler histórias que descrevem situações que ouvi na primeira pessoa durante anos em minha casa.

Os meus Pais são Retornados, e eu sempre disse que o eram com muito orgulho, mas agora mais ainda, porque quando vieram de Angola começaram tudo do zero, e construíram uma vida nova, mas acima de tudo, construíram um futuro pros dois filhos, com imenso trabalho e sacrifício. Eles venderam papel de parede porta-a-porta, pinturas e quadros, pratos, bacalhau demolhado pra pesar mais, o meu Pai passou um ano em Lisboa a ir a casa aos fins de semana e ainda hoje odeia Lisboa e nunca cá quer vir por os pés (é com cada fita lá em casa que não lembra ao careca, por muito que lhe explique que a Lisboa que ele conheceu já não existe, não vale a pena. Nem a minha casa conhecem e é escusado explicar que é lindíssima e espaçosa e não fica num amontoado de prédios primários. E depois de ler o livro percebo porquê, mas vou continuar a insistir), a minha Mãe abriu um cabeleireiro na sala de jantar da nossa casa, e eu cresci entre pentes e tesouras, a dar 50 beijinhos por dia a todas as Senhoras que pela nossa porta entravam (ainda hoje não deixo que os Pais peçam às crianças pra me dar beijinhos quando as conheço, já me chegou a mim a quantidade de beijos melados que recebi nos meus primeiros 10 anos de vida!) e que ainda hoje cumprimento como família que são, pegaram todas em mim ao colo! brinquei com as filhas e filhos delas! cortei-lhes as perucas! Agora não haviam de ser família? Enfim, só faltou fazerem o pino pra refazerem a vida deles e ensinaram-nos a mim e ao meu irmão que nada é garantido, que temos que ser desenrascados e polivalentes, e que quando se emigra também há retorno.

Só quem já começou do zero sabe avaliar o que os Retornados passaram quando todo o “império Português” ruiu e se viram sem nada, perderam tudo, TUDO o que tinham comprado com tanto esforço e suor do outro lado do Oceano.

Os meus Pais falam bastante da vida em Angola, como era, o que faziam ao fim de semana, do Mussolo, da Baía do Cuanza, da Ilha, do marisco nas tardes de praia, da casa cheia de gente nova que tal como eles tinha ido pra Angola para viver uma vida melhor, da beleza que era Nova Lisboa, das palmeiras, das mangas, do abacaxi gelado com vinho do Porto que a minha Mãe comeu até enjoar, do calor, do cacimbo e das ventoínhas, da Maria Helena que dizia ter 15 anos e tinha 11 e que eles adoptaram qual filha e que quiseram trazer para Portugal mas que quis ficar com a Mãe e nunca mais souberam nada dela, das empregadas que roubaram o enxoval da minha mãe dizendo que estavam grávidas enquanto levavam as toalhas e os lençóis atados à barriga, da Julieta Pala que é um nome que não esqueço, dos tiroteios que deixavam a minha Mãe em pânico completo, do papel de parede no apartamento e das decorações feitas com imaginação e pouco dinheiro, do casamento por procuração enquanto o meu Pai apanhava um escaldão na praia, do facto de serem “o Consulado Melgacense” e receberem todos os tropas que iam de Portugal pra Angola e lhes darem o conforto dum lar por uns dias e comida decente, do meu Tio Eduardo que esteve lá com eles e das peripécias dele, e dos imensos amigos que nunca mais viram e da vida boa e agradável que por lá tinham no seu início de vida de casados nos seis anos que lá viveram juntos.

O meu Pai fala muito sobre os tempos de Tropa e das batidas, e da sorte que teve ao ser recebido por um rapaz de Melgaço de quem ficou amigo mas que desconhecia antes de chegar, e que “lhe deitou a mão” só por serem da mesma terra. Dum companheiro Holandês que tinha que se chamava Kruk (que de certeza que se chamava outra coisa que os Tugas traduziram para algo como kruk e que quase que aposto que era Belga…) e que homenageou à sua maneira quando baptizou o nosso cão 🙂

Mas….

…os meus Pais falam muito pouco do pós 25 de Abril em Angola e ainda menos sobre o retorno a Portugal.

Ainda hoje quando liguei ao meu Pai a dizer: tens que ler este livro, vou-to emprestar! Ele contou-me o último dia em Angola no aeroporto (que é uma das poucas histórias que eu conheço) e acaba com um: mas isto são coisas de que não vale a pena lembrarmo-nos.

Por isso eu sei pouco sobre essa altura, e este livro veio preencher esta lacuna, embora se aplique mais àqueles que nasceram lá (eu e o meu irmão nascemos em Portugal em 76 e 79) e para quem a “Metrópole e Portugal Continental” não passavam dum mapa que havia na sala de aula. Mas estas passagens do aeroporto descrevem melhor o que o meu Pai ainda hoje me contou, e ao lê-las parecia que os via lá, de mala na mão, em fuga dum País onde trataram bem toda a gente, em direcção ao seu País onde não esperavam ser tão mal recebidos.

A minha Mãe regressou em Abril de 75, o meu Pai diz que ela não aguentou a pressão – o meu Pai é tolo, algum dia algum de nós ficava num sítio onde havia tiroteios todos os dias e a tensão crescia diariamente?, e trazia mais que uma mala, cheias do pouco que tinha, e diz que lhe roubaram duas malas (nunca percebi se no aeroporto de Angola ou no de Lisboa) onde tinha mais coisas. Lá em casa há dentes de marfim e um ovo de avestruz cheio de areia de Angola que o meu Pai protege desde que eu sou gente (se partem o ovo, levam uma coça que nunca mais se endireitam!!! Deus me livre, aquele ovo lá em casa era um verdadeiro óscar!) e umas bonecas de marfim que são africanas das tribos de perfil, uns slides e umas fotografias deles e dos penteados trançados que elas usavam, animais selvagens e afins. Honestamente, agora que penso nisso, nem sei como é que trouxeram tanta coisa, a minha Mãe não é nenhuma máquina a empacotar, ou então era e perdeu-lhe o jeito (quando ler isto vai-me pendurar pelas orelhas qual bacalhau seco!) 😀 Também havia um gira-discos, e umas colunas de som, se calhar mandaram em contentores antes, porque naquela altura estes apetrechos eram volumosos. Mas vêem, não sei bem, porque nunca falam sobre isto porque não gostam de se lembrar, o que é compreensível, não é?

O meu Pai regressou no fim de Julho, chegou ao aeroporto no carro emprestado dum amigo que depois o ia lá buscar, tinha bilhete garantido, mas à porta do aeroporto estavam centenas de pessoas que já lá dormiam há mais de 4 e 5 dias a guardar a sua vez para se virem embora e que não tinham bilhete. Os guardas decidiram fazer uma fila em quadrado das pessoas, e como ninguém se mexia mandaram vários disparos de rajada pro ar. O meu Pai que ia a sair do carro com a mala atira-se pro chão. Quando os disparos acabam, deita a correr e só pára na porta do aeroporto onde fica em segundo ou terceiro lugar a seguir à porta. Deixou a mala pra trás. Diz-lhe uma das pessoas – então não vai buscar a mala? Eu quero é que a mala se foda! Oh Senhor, vá lá que nós guardamos-lhe a vez que nós bem o vimos a chegar! E é quando eu sei disto que penso, a sorte que me acompanha sempre a mim e ao meu irmão tem de vir do meu Pai! Então ele passa à frente de centenas de pessoas e ainda o defendem e guardam-lhe o lugar? É preciso nascer com o “cú virado pra lua”!

E ele foi buscar a mala, e ficou à porta do aeroporto à espera pra entrar desde as 8 da manhã até à meia-noite, hora a que conseguiu entrar e chegar a um avião de madrugada que o trouxe de volta contrariado.

A descrição no retorno é de Agosto/Setembro de 75 aproximadamente acho eu, pelo menos a avaliar pelas descrições seguintes, e fizeram-me lembrar esta história do meu Pai do aeroporto de que ele não gosta de se lembrar.

Este blog já me serviu pra encontrar primos, e pra conhecer pessoas maravilhosas e fazer amigos.

Gostava muito que este texto imenso servisse pra encontrar amigos dos meus Pais, quem sabe são os vossos Pais ou os vossos Tios ou primos, ou para se encontrarem uns aos outros 🙂 A caixa de comentários é toda vossa, partilhem as vossas histórias como Retornados ou filhos de Retornados.

6 comments:

  1. Querida Sofia, o Retorno foi o primeiro livro que li da Dulce Maria Cardoso e a partir daí li todos os outros. O livro tocou-me muito e não sou, como tu, filha de retornados. Mas este teu texto, escrita em catadupa, num turbilhão de emoções ainda me tocou mais. Grata pela partilha. Espero que este teu blog encontre as tais pessoas de que procuras. Bjs grandes

    1. Fingers crossed para que apareçam, era mesmo muito giro encontrar os amigos dos meus Pais assim.
      Estou a coleccionar mais estórias e vou partilhar também.
      Muitos beijinhos!!!

    1. Oh pa, os meus Pais gostavam de encontrar uma senhora que era a Arlete, mas não sabem o apelido… assim está difícil! 🙂
      Mas nunca se perde a esperança!!!
      E és uma fofinha!! Beijos!!

  2. Já estamos em 2019, não sei se vais ler esta mensagem. Conheci uma senhora chamada Arlete, angolana, ela foi minha encarregada numa empresa de limpezas, ela morava, ou mora, na Quinta do Conde.
    Sou brasileira, morei em Portugal alguns anos, agora estou no Brasil e estou escrevendo um livro sobre uma senhora muito querida aí de Portugal, ela morou em Angola também.
    Amei encontrar seu texto, fico profundamente comovida com essas histórias, tanto dos retornados quando dos angolanos…

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